sábado, 27 de outubro de 2012

 
O MESMO TREINO E RESULTADOS DIFERENTES.
 
Dois amigos começam a correr juntos, seguindo um plano. No início, o grau de desempenho é até semelhante, mas passado algum tempo um deles deslancha, enquanto o outro não consegue melhorar sua velocidade. A individualidade da resposta do treino físico é uma área de interesse crescente, e saber porque algumas pessoas respondem melhor ao treino é uma questão interessante, mesmo que se esteja falando de atividade física para a saúde.

Um dos maiores estudos já realizados nesta área foi elaborado por um grupo de universidades americanas e canadenses, chamado de Heritage Study (a sigla se traduz em saúde, fatores de risco do treino físico e genética). Este trabalho teve seus primeiros dados publicados em 1995, e continua rendendo frutos até hoje. Os pesquisadores avaliaram um total de 90 famílias brancas e 40 famílias afro-americanas (cada família com cerca de quatro membros). Todos os participantes foram submetidos a um período de treino de 20 semanas em bicicletas ergométricas, e diversas variáveis de desempenho, condicionamento cardiorrespiratório e marcadores relacionados com a saúde foram avaliados antes e após o período de treino.

O treino utilizado seguiu uma progressão linear, em que os participantes eram guiados por um programa de computador, com carga inicial de 30 minutos na frequência cardíaca associada com 55% do consumo máximo de oxigénio (VO2max) inicial do participante e atingindo uma carga de 50 minutos a 75% do VO2max ao final das 20 semanas. O treino era monitorado por um software, que ajustava a carga da bicicleta para que os participantes estivessem sempre dentro da frequência cardíaca alvo para a sessão, algo aliás que faria sucesso nas academias de hoje.

Como esperado, os participantes obtiveram um aumento médio de 20% em seu VO2max, nada incomum para sujeitos destreinados. No entanto, cerca de 20% dos participantes teve um aumento muito menor - alguns inclusive sem melhora alguma. Quando se comparam dados de frequência cardíaca durante o exercício leve, verificou-se que os indivíduos que não haviam respondido bem ao treino tiveram uma diminuição de apenas cinco batimentos por minuto em média, enquanto os da outra ponta chegaram a uma redução de 18 bpm.

Este resultado é surpreendente, porque a frequência cardíaca é uma das variáveis mais "fáceis" de se obter resultados: com a melhora do condicionamento, o coração fica mais forte e passa a precisar de menos batimentos para circular uma mesma quantidade de sangue. Obviamente, estamos fazer uma análise superficial dos resultados do trabalho, já que existem alguns fatores que explicam parte desta discrepância, como o nível inicial de condicionamento físico dos participantes de cada grupo. No entanto, o que fica claro é que existe uma imensa variação no potencial de resposta ao exercício entre pessoas diferentes, mesmo que expostas à mesma (teoricamente) carga relativa. Como explicar estas discrepâncias tão grandes?
O LIMIAR DO LACTADO. Quando se prescreve uma mesma carga relativa, geralmente se fala em um percentual de máximo. Frequência cardíaca, consumo de oxigénio ou velocidade máxima em um evento são algumas das variáveis mais utilizadas para medir a intensidade de sessões de treino. Pode-se realizar uma série de 4 x 1 km a 80% da FCmax, ou a 110% do ritmo de uma prova de 10 km, por exemplo. Desta maneira, estaremos teoricamente eliminando diferenças interpessoais, pois cada um estará se exercitando na mesma carga relativa ao seu máximo. No entanto, nosso metabolismo não necessariamente será impactado da mesma maneira.

Um dos complicadores da equação é o limiar de lactado, uma intensidade de exercício a partir da qual a concentração de lactado sanguíneo aumenta desproporcionalmente; um reflexo de que o metabolismo anaeróbio está funcionando em maior escala. Pessoas destreinadas apresentam este limiar em cerca de 50% de seu consumo máximo de oxigénio, enquanto corredores bem treinados podem levar este ponto para além dos 90% de sua capacidade máxima aeróbica.

Quando o metabolismo anaeróbio é mais solicitado, a presença de lactado desencadeia uma série de eventos no organismo que não ocorreriam de outra forma, e por isso as adaptações que surgem de treino feitos acima do limiar anaeróbio são diferentes, ou ocorrem em uma velocidade diferente daquelas provenientes de treinos feitos abaixo de tal intensidade. Assim, duas pessoas que tenham seu limiar em percentuais ligeiramente diferentes de sua frequência cardíaca máxima podem ter estímulos de adaptação diferentes, mesmo quando realizam séries "semelhantes".

Uma solução óbvia para este problema é usar o próprio limiar de lactado como valor de referência, algo que muito treinadores fazem. No entanto, apesar de sabermos da relação de um aumento desproporcional da concentração da lactado ao se elevar a intensidade, existe uma discussão muito grande sobre como medir corretamente este ponto e sobre se as medidas de lactado como são feitas hoje são reproduzíveis o bastante (ou seja, se elas são confiáveis) para serem utilizadas como marcador de intensidade. É como você medir sua massa corporal toda a semana numa balança que um dia mede 1 kg a mais no outro 1 kg a menos. Se você não tiver certeza de que a balança informa corretamente, não poderá acreditar quando o valores lidos se alterarem.

3 TIPOS DE FIBRAS. A musculatura esquelética, a que utilizamos para nos movimentar, apresenta três variações: as fibras chamadas lentas, as intermediarias e as rápidas. As diferentes fibras são inervadas por motoneurônios com potencial de transmissão e estímulos nervosos igualmente diferentes. Outra diferença crucial entre os tipos de fibras são as proteínas que constituem suas unidades contrateis.

Para desempenhar sua função, cada tipo de fibra está equipada com uma "maquinaria" adequada. As rápidas possuem o seu sistema de produção de energia adaptado para tarefas curtas e de alta produção de força, utilizando em grande parte o metabolismo anaeróbio, baseado na utilização de carboidratos. Já as lentas estão guarnecidas por um sistema capaz de produzir força em menores quantidades, porém por longos períodos de tempo, utilizando o metabolismo aeróbico para queimar gorduras e carboidratos. As fibras intermediarias ficam no meio do caminho entre os dois extremos, e dependendo do estímulo fornecido com o treino, elas podem se adaptar para trabalhar mais de um modo ou de outro.
 
As fibras musculares possuem uma hierarquia de recrutamento, com as lentas sendo ativadas em menores níveis de produção de força e as rápidas entrando em cargas mais altas de esforço. Se considerarmos que diferentes corredores possuem proporções diferentes dos três tipos de fibras em suas musculatura, fica fácil entender que algumas cargas de treino serão muito mais apropriadas para um determinado corredor do que para outro, e consequentemente terão um potencial de adaptação maior ou menor.
MEMÓRIA CELULAR. Um conceito interessante quando se fala em adaptabilidade ao treino é relacionado com as experiências prévias de um pessoa. Alguém que já tenha sido um praticante ávido de exercícios físicos sempre possui uma facilidade muito maior para retomar o condicionamento, mesmo que abandone sua atividade por anos inteiros. O organismo desmonta as estruturas que haviam sido criadas durante o período inicial de treinos, mas é como se ele mantivesse a "receita" para reconstruí-las, e torna-se muito mais disposto a fazê-lo novamente no futuro, caso seja solicitado.

Esse é possivelmente um dos principais motivos pelo qual algumas pessoas despontam com muita facilidade quando começam a correr, enquanto outras demoram muito mais até conseguirem algum grau de evolução. Porém, os mecanismos através dos quais isto acontece ainda não são bem conhecidos, apesar de o fenómeno ser muito bem descrito.
ESTRESSE E ADAPTAÇÃO. Todas as adaptações ao exercício que acontecem no nosso organismo se dão pela sequência de estresse e adaptação. Ou seja, o corpo é exposto a uma carga agressora, esta por sua vez irá estimular a secreção de algum hormônio ou a transcrição de algum gene, que finalmente irá resultar no processo adaptativo.

Analisando este sistema, temos dois pontos principais onde podem haver diferenças significativas entre pessoas. O primeiro deles é o nível de estresse que determinada carga irá gerar. O corpo humano não é um sistema "previsível" neste sentido. Estudos com treino de força, por exemplo, mostram que existe uma variabilidade imensa na quantidade de hormônios secretada por diferentes indivíduos frente à mesma série de exercícios máximos na musculação.

Não é como um teclado de computador por exemplo, onde se pressionarmos a tecla "A" sabemos exactamente o que vai acontecer. Uma série de corrida intervalada pode produzir um "A" em determinada pessoa e um "AAA" em outra. Ou seja, sabemos qual vai ser a resposta (um "A" e não um "B", por exemplo), mas não há como saber de antemão o seu nível exato.

O segundo ponto no processo de estresse-adaptação é qual a resposta gerada em relação ao processo de sinalização. Algumas pessoas podem ser mais ou menos sensíveis a uma determinada concentração hormonal circulante, então não há garantias de que uma concentração mais alta equivale a mais adaptações.

CÓDIGO GENÉTICO. Finalmente, um pouco sobre o quanto nosso organismo está disposto a se adaptar em resposta a estímulos de treino está escrito em nosso código genético. O genoma humano é uma extensa "receita" para a fabricação de proteínas, uma sequência interminável das mesmas quatro bases, conhecidas como A, T, G, C. Esta sequência é virtualmente a mesma para todos, no entanto de tanto em tanto aparecem variações, chamadas polimorfismos. São estes poliformismos que serão os responsáveis pelas nossas diferenças físicas.


O Heritage Study mostrou, por exemplo, que cerca de 50% da variação do consumo máximo de oxigénio estava associada a fatores hereditários, mais do lado materno do que do paterno, talvez em função do fato de herdarmos as mitocôndrias (estruturas responsáveis por produzir energia aerobicamente) exclusivamente de nossas mães.

Existem vários estudos hoje em andamento que buscam identificar quais são os polimorfismos responsáveis por determinar se uma pessoa responde bem ao treino ou não. Dadas as possibilidades para a área médica com este tipo de pesquisa, o campo promete bastante. Mas como dissemos antes, o genoma humano é uma sequência quase interminável.